Ele está a caminho de casa. Mesmo caminho de sempre, mesma ladeira, mesmo esforço. Na esquina final da ladeira quase interminável, a casa azul. “Mas... será que eu já vi essa luz acesa? Não me lembro... e esse som... que estranho, não lembro desse som também”. Ele vê só uma luz acesa, apenas a penúltima das 4 janelas do segundo andar. Saindo da casa, talvez dessa janela, um som que pode ser música, ou alguém cantando, ou só algo ritmado. Não dá pra identificar. “Que engraçado... acho que nunca prestei atenção”.
Vida de cidade grande - acordar, trabalhar, comer, trabalhar, enfrentar trânsito infernal... e subir ladeiras para chegar em casa. Aquela é especialmente íngreme, e chegando ao topo ele anda mais 2 quadras ainda. Cidade grande, grandes distâncias. Chega em casa, toma banho, come qualquer coisa e se enfia na internet, procurando alguém pra fingir que não está sozinho. “Amanhã é dia de trabalho, de novo”.
Dia seguinte, rotina normal, trânsito agravado pela chuva torrencial que enche a cidade e parece querer quebrar a janela do ônibus com sua força. Desce no ponto de ônibus, pega seu guarda-chuva (daqueles que cabem na mochila e mal evitam os pingos), e lá vai pela ladeira. Chegando no topo, olha a casa azul... e a mesma cena: luz acesa na penúltima janela, e só nela. E aquele som, que ele ainda não decifra. “É ritmado, sem dúvida. Mas o que é?”. Para um instante sob a chuva, que já molha suas meias, tenta avistar algum vulto, alguma silhueta. Nada vê, e volta a andar com pressa. Dorme mais cedo, e torce, como todos, pela chegada do final de semana.
Chove mais dois dias. Ele começa a ficar sem meias limpas, e continua sem saber que som é aquele, e sem ver quem ou o que o faz. Ainda para, tenta ver, mas desiste logo. E começa a se perguntar se não é idiota demais ocupar sua cabeça com isso. Afinal, já não tem problemas demais? “Jonas, você, cara ocupado, tem seus problemas. Para de pensar nisso, que importância tem não saber o que faz esse barulho? É só um barulho. E se a pessoa descobre que você tá espionando, não vai ficar feliz. É isso - vou deixar essa história pra lá”.
Dia seguinte, e a chuva dá uma trégua. Sol, mas sem muito calor; Trânsito rápido, milagre de final de semana. Sobe a ladeira, avista a casa azul e... janela apagada. “Nossa, que cheiro é esse? De onde vem?”. Ele procura a fonte do cheiro, uma mistura de perfume muito doce e alguma coisa apodrecendo. Ouve o barulho, mas muito baixo, só percebe quando se aproxima da casa azul... e o cheiro parece vir de lá também. Está próximo ao muro alto da casa, que deixa ver apenas o segundo andar. A porta, de madeira pesada e antiga, não tem olho mágico. Só a maçaneta, cor de ouro envelhecido, se destaca na madeira. Todas as luzes estão apagadas, e é como se não houvesse ninguém na casa. O único sinal de alguma 'vida' é o barulho, ritmado, que lembra música. Ainda assim, tão baixo, como se viesse de algum lugar longe, dentro da casa, abafado. “Som vindo de longe, de algum lugar longe. É, sim, é isso. Só não sei como...”.
A casa o intriga novamente. Não se concentra direito no jornal da noite, e fica pensando nela antes de dormir. Cogita a idéia de aproveitar o domingo para investigar... e em seguida descarta a possibilidade, pensando em como isso é absurdo. “Imagina, agir que nem nos filmes. Vou acabar preso por perturbação da ordem. Denunciado por invasão de privacidade”. Decide: amanhã não vai nem passar por aquela rua. Vai fazer outro caminho. Chega disso.
Domingo, volta pra casa. “Amanhã é dia de trabalho". Começa a fazer um caminho novo, mas sua cabeça só pensa em passar na frente da casa azul. Ele quer ver se a luz voltou a acender, se o cheiro sumiu, se o barulho está lá. Não consegue vencer a curiosidade - faz o caminho de sempre, sobe a ladeira e vê a casa com as luzes apagadas, o cheiro um pouco mais forte e o barulho do mesmo jeito, abafado, longe. Nada além disso. Nem sinal de movimentação, nem bichos de espécie alguma, nada. O mistério do outro, intransponível, impenetrável, sem perspectiva de solução. Vai pra casa devagar, olha pra trás, esperando qualquer sinal. Zero.
Está definitivamente intrigado pela casa. Pesquisa na internet, procura saber quem é o dono, se há alguma história misteriosa, notícias, qualquer coisa. Encontra pouca coisa: o endereço, as fotos do Google Street View. Não acha anúncio de aluguel ou venda, mas isso não quer dizer nada - a casa pode ser de uma família há muito tempo, ou ter sido anunciada fora da web. Não há notícias, nem de assassinatos nem de mistérios, como aconteceria nos filmes. “É apenas uma casa azul, com porta de madeira maciça, pesada. Só isso. Convença-se disso de uma vez!”.
Dia seguinte, trabalho, rotina. Ele tenta se controlar, mas espera ansioso pela volta pra casa. Pega o ônibus, desce no ponto, sobe a ladeira quase correndo. Chega à esquina e vê a luz acesa novamente, ouve o barulho mais alto, não sente mais o cheiro. Olha para a janela... e enxerga algo que parece uma silhueta feminina. “Uma mulher! A casa tem uma moradora, afinal!”. Olha encantado para a nova descoberta, e vê o vulto se afastar. Quase grita um ‘não’, mas teme chamar a atenção dessa forma. Contudo, precisa entrar em contato. Precisa falar com ela, precisa descobrir o que há naquela casa. Nada mais importa - ele poderia ter gritado, ela poderia até chamar a polícia, ele pode ser preso por perturbação da ordem, por invasão de privacidade. Tudo o que importa é saber qual é o segredo, o que se esconde na casa.
Ele se dirige à porta. Procura uma campainha, não encontra. Resolver bater com o punho fechado, temendo não fazer barulho suficiente, não ser ouvido. Bate à porta, ouve suas batidas reverberarem num espaço aparentemente vazio. Fica alguns instantes esperando. Quando pensa em bater novamente, ouve passos curtos e lentos. Não há pressa dentro da casa, só fora. A porta se abre. Ele olha, sorri, e entra. A porta se fecha ruidosamente.
Ela esta a caminho de casa. Mesmo caminho de sempre, mesma ladeira, mesmo esforço. Na esquina final da ladeira quase interminável, a casa azul. “Mas... será que eu já vi essas luzes acesas? Não me lembro”. Ela vê duas luzes acesas, a primeira e a penúltima das 4 janelas do segundo andar. Saindo da casa, talvez dessas janelas, um som que pode ser música, ou alguém cantando, ou só algo ritmado. Não dá pra identificar. “Que engraçado... acho que nunca prestei atenção nesse som também”.
Perda total: a revolução dos órgãos
Há 4 meses
Muito bom! Gostei! Mas me diz uma coisa... Afinal, o que tem na casa Waldir Correia? hahaha Beijos e parabéns!
ResponderExcluirHahaha, Waldir Correia, hahaha. É verdade, né? Bem, Lena... o que quer que tenha lá, eu acho melhor não querer saber =D
ExcluirOuvi você contando isso na minha cabeça enquanto eu lia. =D
ResponderExcluirDroga, agora eu vou lá bater na porta pra saber o que tem na casa.
ResponderExcluir